quarta-feira, 12 de março de 2014

O Mundo da Lua


Levantou-se cedo naquele dia. Pela ampla janela do quarto entrou a aurora, sorridente, anunciando a vinda do rei Sol. Como era bela a natureza! Tal entusiasmo levou-o a sair para o pequeno terraço que circundava a casa, decisão premiada com a visão da fugidia e bela Lua, brilhante e calma, ainda presente, talvez na expectativa de se cruzar com o tão amado astro, luminoso e intenso. O céu estava limpo, sem nuvens, aquelas que por não lhe pertencerem, podiam ser ausentes. Tomou o café ali mesmo, saboreando-lhe o aroma e toda a harmonia envolvente. Há cafés e cafés!
Tudo o que tem um início, tem um fim. Assim, como por magia, uma espécie de movimento do maior para o menor, trá-lo a outra faceta do tempo presente. É hora! Hora de recolher. Espanta-se com tal expressão. Por que razão se sentia a recolher? Aquela manhã estava estranha, muito estranha…
O automóvel espera-o à porta de casa, como um fiel servidor, discreto e dispendioso. Com a ignição vem a primeira novidade do dia: alguém matou alguém. O coração queixa-se, discreto, como um fiel, e para sempre, servidor. A hora marca o que tem de ser feito, é preciso continuar. O rádio anuncia, uma após outra, notícias de medos, roturas, embustes e trânsitos infernais, como é normal. Tudo decorre como o esperado, excepto a visão duma janela, que ficou para trás mas ali continua, teimosa, mostrando o sentido inverso. Ali, é preciso continuar, como é normal.
Olha pelo vidro do carro e lá está a Lua, ainda, provocadora. Olha-a, fixa-a. Em contornos esbatidos parece querer fundir-se com o céu. De repente uma qualquer sintonia estabelece-se. É no centro do peito que a sente. Vê-se a estender a mão à Lua, que se faz tão perto. Como será olhar a terra lá de cima? Sim, já viu fotografias da NASA, com excelente resolução mas nunca como agora viu a terra.
É lá de cima que olha a sua casa no universo, um pequeno ponto, azul, brilhante. Sente-se pequeno demais face a tanta beleza e serenidade. O corpo está mais leve, como se a fronteira que sempre acreditou existir entre corpo e o exterior se quebrasse e uma outra noção de liberdade, de interligação com tudo, se estabelecesse. Cores e formas mostram-se como são e tudo parece estar no lugar certo, tudo faz sentido.
Apetece-lhe abraçar a terra, acolhe-la no seu regaço e protege-la. No mesmo instante sente que o faz, que pode, e quer, acolher nos braços aquela mãe, agora num horizonte feito de não distância. O tamanho de que é feito transforma-se. É, sem tamanho.
Com a Terra em si uma dimensão desconhecida descobre-se. Reconhece um estado de não separação: Ele, a Terra, o Espaço, a Lua, o Universo, não são mais “Ele, a Terra, o Espaço, a Lua, o Universo”. É na não nomeação que reconhece o fluxo de harmonia sem tempo nem espaço, sem isto ou aquilo, seu eu e outro. A luz veste tudo o que inter-é.
De repente a Terra mostra-se de novo. Tinha voltado à separação. Ainda assim o abraço mantinha-se. A protecção que lhe dedicava era ainda insuficiente. Aconchegou-a mais e mais, a si, como que a revisitar o estado de não separação sabido. Olhou bem para aquele planeta tão frágil. Olhou-o nos olhos. O coração queixou-se, quando uma lágrima rolou por uma encosta. Atrás dela muitas outras lhe seguiram os passos. A Terra chorava.
O coração queixa-se. Ali, no mundo da Lua, volta-se também para ele. Sente-lhe o batimento alterado. Não é só a Terra que chora. Aquele órgão vital, sensível, associa-se ao que de repente os seus olhos podem observar. A Terra chora seus filhos perdidos, as entranhas rasgadas, estripadas, os céus poluídos.
Ali, de mão dada com a Lua, pode ver todo o sofrimento de um planeta que luta por sobreviver.
Vê homens de coração de oiro, empedernido por ele, crianças famintas de alimentos vários, guerras cujas armas matam esperanças. Vê um corre-corre, desenfreado e a inanição sem volta. Vê montanhas e florestas estropiadas, mares e rios cobertos de sangue, gentes fugindo com nada nas mãos e terror no coração. Vê belas obras espelhadas elevando ao céu as altas finanças, pastas de couro tingidas de morte, mentiras, traições, egoísmo extremo. Vê a Terra jurada de uma finitude precoce. Vê a separação fatal entre os reinos dos homens dos animais e dos vegetais. Corre-se para ter mais, muito e rapidamente. Morre-se por não se chegar a nada.
Subitamente, sente-se abraçado pelo Lua. Um raio de sol atinge a Terra alumiando-a. O coração alegra-se e uma vontade de fazer diferente invade-o.
O som de uma buzina e a voz alterada da mulher chamam-lhe atenção. Tinha deixado cair o vermelho sem se mover. Sorriu. O sol brilhava, o dia estava lindo. Finalmente arrancou. A mulher, a seu lado sentada, comenta perplexa que estava a tomar o caminho errado. Era já tarde e tinham que abrir a empresa. Olhou-a sorrindo dizendo-lhe que naquele dia não, não abriria a empresa. Apetecia-lhe parar, ir até ao mar. Olhar a natureza, contempla-la.
Almoçaram os dois à beira-mar. A companheira de vida quer saber o que se passa com ele, naquele dia, pois “parecia não estar cá”. Por onde andava?!
Sorriu-lhe e respondeu “ no mundo da lua!”.
Aldora Amaral

2013.11.30