segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Poetas que sou


Deixo cair as palavras sobre mim
As tuas, agora minhas.
Visto-me delas
Sorvo-as,
Como seiva milagrosa.
Como sabias que te esperava?
Que te necessitava?
Que era este o momento de te ler,
De te sentir
De te fazer meu?

Poetas que sou,
Poetas da minha vida,
Sem vós nada seria.
Convosco rio e choro
Cresço e namoro
E tenho vontade de ir mais além
Ou de ficar aqui.
De ser forte e fraco,
De descobrir o mundo,
E num grito profundo
Descobrir-me a mim.

E quando a vossa poesia me faltar
Serei mais pobre
Não porque parti,
Mas porque vos deixei.
Perante o sagrado
Prometo voltar
Para ser de novo
Arauto de um povo
Que ao mundo doou
Poetas que sou
Sem nunca o ter sido.


Aldora Amaral
2013.12.10





domingo, 8 de dezembro de 2013


Lançamento do livro "Lugares e Palavras de Natal", Alenquer, Museu João Mário





Hoje é Natal

Jesus desceu à Terra. Ninguém parecia dar por isso. Naquele 24 de dezembro, a azáfama reinava. A cidade desenhava contornos de formigueiro. Havia pressa, idas e vindas, toques, encontrões e pedidos de desculpa, embrulhos coloridos, luzes e decorações sofisticadas. A crise pairava sobre todas as cabeças, numas gerava fome, noutras, opulência.
O filho de Maria e José deambulava pela cidade, contemplando, perplexo aquela dimensão da existência, a humana. Para onde corriam? Porque não se olhavam?
De repente, um menino corre na sua direção ignorando os gritos da mãe para que não se afastasse. Reconhecera Jesus.
- Jesus, Jesus! Grita o rapaz.
Faz-se um silêncio que penetra todo o ambiente como se de um efeito ondulatório se tratasse. Algo se propaga perante o grito anunciador. Todos olham na direção sagrada.
- Jesus, continua o rapaz do alto da sua inocência, minha mãe diz que só nasces amanhã, como podes estar aqui hoje?
Jesus olha o rapazinho e sorri-lhe. Depois percorre com o olhar todos os que de si se acercam. Pega a mão do menino e inicia uma caminhada por entre os que, ainda espantados e incrédulos, ali se encontram. Pode ver rostos fartos, ricas roupagens, rostos famintos, rostos envelhecidos e sofridos, uns marcados pela dor da doença, outros pelo medo, pela solidão. Homens e mulheres tresmalhados, crianças velhas. Perante tudo isto, com uma voz suave mas determinada e um sorriso aberto e doce diz:
- Meus queridos amigos, irmãos, não existe tempo nem espaço no reino de Jesus e o reino de Jesus é o reino de todos vós, de cada um de vós. Hoje apresento-me aqui para vos mostrar isso mesmo. Nunca parto, nem regresso pois nunca me separei de vós, nem a vós me juntei. Todos os que a isto acederem, todos os que isto sabem, não se espantam com esta minha aparente visita antecipada. Aos outros digo que em mim confiem, que afastem os medos e as dúvidas. Abram o vosso coração e observem a vossa mente. Contemplem o que aí encontram, sem críticas, sem expectativas. Aceitem o que observam. Façam tudo isso, movidos pela vontade de entrar neste reino, a que chamam de Deus, e de percorrer o caminho da bondade, da honestidade, da solidariedade para com todos os seres, pois a todos eles pertence este reino. Considerem-nos, todos, sem exceção, como vossos filhos queridos. Observem os seus sofrimentos e as suas alegrias e façam vossos esses seus estados de espírito.
Jesus dirige-se, em seguida ao rosto marcado pela doença e diz-lhe:
- A doença a faz parte da vida. Pensa naqueles que sofrem mais do que tu, que têm doenças mais graves. Deseja que todos os que sofrem de doenças possam melhorar.
O enfermo assim fez e como por milagre o seu sofrimento por momentos desapareceu e então percebeu que pensar nos outros diminuía o seu sofrimento.
O mesmo se passou com aquela por quem a idade tinha passado demasiado depressa deixando marcas, às quais faltava beleza. Contemplando a tristeza que lhe vinha desse facto soube que a raiva que sentia no coração, cada vez que via uma jovem e bela rapariga, não se devia a essa rapariga, mas sim à não-aceitação da vida. Aos poucos foi amenizando a tristeza profunda que lhe habitava o coração e em breve até alguma graça brotava de cada ruga que descobria.
Também aquela mãe que chorava a partida do filho querido, ouvindo Jesus e observando essa dor pode mergulhar, finalmente, na fé que sempre sentiu ter.
Jesus fala-lhe:
 - Lembra-te que tudo o que tem um início tem um fim. Assim a vida também termina dando lugar a outra existência no reino de Deus.
Embora com saudade a mulher despediu-se de seu menino do coração, confortada por o Saber a caminho de um lugar mais perto de Jesus. Assim e pela primeira vez soube o que era ter fé, sem medos, sem dúvidas, a fé no reino de Deus.
E Jesus continuou:
- Quando verdadeiramente penetrarem neste reino, o de Deus, tudo vos fará sentido. Mesmo o que hoje vos parece injusto, inexplicável, será claro como os belos raios de sol. No reino de Deus existe amor, compaixão, alegria, solidariedade e verdade. Tudo isto habita também o coração de todos vós pois nada existe fora deste reino. No dia em que percebeis isto sereis livres e felizes.
Jesus faz uma pausa. Havia lagrimas de comoção, de emoção, em muitos rostos. O sorriso de Jesus torna-se ainda mais doce. Todos se sentem tocados.
E Jesus prossegue:
- Recordem-se de não existo fora de vós mas, como o esqueçais, ou não o reconheceis, finjo regressar todos os anos, a 25 de Dezembro, uma data inventada por vós. Enquanto assim permanecerdes, para vós renascerei, como renasço sempre que abris o coração para ver Jesus, para sentir Jesus. É Natal, é tempo de todos o fazerem. Experimentem, abram o coração, abram a mente e deixem o Natal florir em todos vós. Deitem fora todos os medos, as invejas, as desconfianças, as raivas, as vinganças e deixem o amor que existe no vosso coração, que sou eu, Jesus, manifestar-se. Sejam amor. O Natal vive em todos vós, sois vós que o expulsais a cada acto, pensamento ou palavra fora do reino de Deus.
Após estas palavras, Jesus olhou o rapazinho que continuava agarrado à sua mão, sorriu-lhe, pegou-lhe ao colo e aconchegou-o junto ao peito, segredando-lhe: Tu também és Jesus, o filho de Deus.
No instante seguinte, tudo voltava ao normal. Era como se nada se tivesse passado. A rua movimentada pareceria voltar ao frenesim que anteriormente conhecera.
José, assim se chamava o menino, jamais esqueceu aquele abraço e as palavras sussurradas ao ouvido. Diz-se até, que naquele Natal, todos os que tinham visto Jesus, haviam de o viver como nunca o haviam feito. Uma força, desconhecida, vinda do fundo de si teria inundado os seus corações e mentes. Essa força levara-os a gestos mais solidários, nesses e noutros natais mas também no tempo entre eles.
José não sabe por que razão Maria, sua velha companheira de vida nunca acreditou muito nesta história. Ainda jovens, ria-se quando José a invocava como se de uma traquinice se tratasse. Agora, no final da existência terrena, mais perto dos céus, dizia-lhe amiúde que tal repetição se devia ao passar do tempo. José não se importava. Maria era uma boa mulher que sempre tinha tido o natal no coração. Via Jesus sem o saber.
No mundo das recordações, José vivia ainda o aconchego do colo sagrado e isso bastava-lhe. Amanhã, quando Deus o chamasse para junto de si, estava certo O reconheceria pois também ele era Jesus, o filho de Deus.

Hoje é Natal e o 25 de dezembro ainda vem longe.

Aldora Amaral
2013.10.07






segunda-feira, 2 de dezembro de 2013


O Silêncio dos Corações






Naquele tempo um bater suave e profundo expressava a paz sentida. Não, não vivia num qualquer céu, repleto de harpas e vestes suaves cobrindo corpos ondulados e belos, de longos cabelos loiros. Não, naquele tempo os corações falavam e os espaços tinham faces conhecidas. O tempo era um aliado e companheiro. Os ritmos, outros.
Lembra-se das longas conversas entre batimentos tão próximos. Falava-se de amor, da amizade, de alegria mas também das tristezas, dos sofrimentos que cada um sentia ou sabia habitar um outro. Sim, porque naquele tempo de proximidade, qualquer arritmia, qualquer movimento era por todos sentido, tal era a empatia existente entre esses órgãos fundamentais da vida física, símbolos poéticos de existências solteiras do que quer que seja ou mergulhadas em laivos de lucidez mais ou menos constantes.
À medida que os ritmos cardíacos se afastavam cresciam as distâncias entre corações. Com o tempo, essas distâncias foram reforçadas por couraças cada vez mais sofisticadas. A respiração viu-se obrigada a reforçar a intensidade das trocas que constituem a sua natureza. O cansaço instalou-se.
Com a distância veio também a solidão. Corações couraçados ocuparam o lugar dos outros: os desprevenidos, os guerreiros de Shambala cujo coração sangra de sensibilidade, os corações escancarados, aqueles que detêm a paz, a liberdade, a alegria pura.
De couraça em couraça, vão esquecendo quem são e as interligações que estabelecem. Vivem no silêncio das mortes lentas, anunciadas. Falam línguas de fogo, com que queimam as esperanças. Decidem sobre as vidas dos outros esquecendo de que matéria são feitos. Tornam-se duros. Pulsam para si próprios. Vivem sob a capa opaca, pesada, do medo. Adoecem precocemente, param subitamente.
Como em todos os tempos, há os que resistem, numa teimosa mas firme certeza de que foram feitos para o amor, para batimentos conjuntos. Recordam algures o tempo dos encontros entre corações e sabem que esse tempo existe, ainda, perdido no universo. Procuram outros e reconhecem-nos, se param para os escutar. Esses encontros, pródigos em linguagens ricas e verdadeiras, tendem a mostrar a beleza de tudo o que existe. O tempo, esse aliado e companheiro de corações que o entendem, que o aceitam, que lhe dão a mão e com ele bailam a dança da vida, está bem presente e mostra-lhes a disponibilidade dos grandes espaços. No encontro, entre corações a alegria descobre-se, o amor despe-se de todas as escravidões. Soltam-se amarras e a viagem rumo ao amor em liberdade tem início, sem nunca ter tido fim.
É no silêncio dos corações que a morte habita, negra, hirta, gelada.
Hoje, neste tempo de mortes lentas e anunciadas vou aquecer o meu coração, pintá-lo de branco e atirá-lo ao alto, como um balão colorido que desperta a alegria nas crianças e o desejo, esquecido, reprimido, de brincar, que nem os corações couraçados alguma vez perderam. O tempo, esse aliado, chega então de mansinho e avaria os relógios. O homem ri, rebola-se na relva junto do menino que persegue o cão. A lua aparece no horizonte, empurrando o sol para o outro lado do planeta.
O mundo cala-se. Faz-se silêncio. Dos corações renasce a luz das vozes inaudíveis.
2013.11.14