Até ser Primavera
Na
primavera da vida todos os sonhos são possíveis. O ano, este bissexto,
detestava particularmente esta apreciação. Por que carga de água (esta mais
frequente no inverno e no verão dependendo da geografia do lugar), teria a
primavera direitos que às outras estações eram negados? No mais fundo de si
próprio, o ano bissexto, sentia-se como aquela mãe para quem, preferir um filho
a outro era incompreensível. Cada um era o que era, dava e tomava de si
diferentes emoções e sensações, mas a todos queria com a mesma intensidade. E
sonhos, sonham-se em todas as estações ou melhor, sonhar é brincar com a vida
que é um assunto muito sério.
Assim,
o ano bissexto decidiu convocar todas as estações para refletirem sobre o
problema e juntos encontrarem forma de mostrarem aos humanos que as estações do
ano não são responsáveis pelos seus sonhos ou ausência deles.
Nesse
dia a confusão instalou-se. O inverno foi o primeiro a chegar, era a sua
estação. O dia acordou gelado. Todos se cobriam de agasalhos, mas de repente
foi preciso tirar os gorros e as luvas pois o sol despontou suave e luminoso. Sempre
pontual, a primavera que chegava sob o olhar incrédulo, dos que passavam por
parques e jardins da cidade, perante o desabrochar das flores ou o seu crescimento
a um ritmo nunca visto. A natureza parecia estar louca.
Ainda
mal se tinham recomposto daquela súbita manifestação primaveril, em pleno
inverno, já o verão se mostrava no seu esplendor decidido a chegar a horas à
reunião. Flores murcharam de sede e as esplanadas encheram-se de gente e de
roupagens despidas, ali mesmo, e penduradas em cadeiras. Até as praias viram as
suas areias repletas de banhistas, desprevenidos, deixando as botas à beira mar
e mergulhando os pés no oceano.
Os
jornais não falavam de outra coisa. O dia caminhava pelas estações do ano
deixando perplexos os homens e as mulheres, as crianças, os animais e os
vegetais. A vida confundia-se ao ritmo da chegada das estações à reunião
urgente.
Ao
longe o outono anuncia-se e as folhas caem. Ventos fustigam a cidade e os
habitantes recolhem as roupas, já temerosos do que o dia ainda lhes poderia
reservar. Alguns diziam que um tempo assim não era bom sinal, outros lembravam
que o tempo apenas manifestava o desprezo que a humanidade mostrava ter pelo
planeta. Ninguém se entendia.
Finalmente
as quatro estações estavam reunidas na casa do inverno que espalhou por todo o
lado alguns flocos de neve como que agradecendo a presença de todos, na
tradição de bem receber. Na rua tudo voltou ao normal. As gentes finalmente
sentiam-se protegidas pela normalidade. Afinal estávamos em janeiro.
O
bissexto abriu a sessão, feliz por ver os filhos reunidos. Primavera alega
nunca ter influenciado os humanos na atribuição, a si, do sonhar da vida mas
não se admirava de tal pois as suas manhãs, luminosas e calmas, e a harmonia
das suas temperaturas chamavam à melancolia e ao sonho. Afinal ela anunciava o
fogo do verão. O fogo é tumultuoso, chama à preguiça, pelo muito que desgasta.
O outono talvez seja demasiado cinzento, para os sonhos desejados e o inverno,
esse nem se fala, quem é que pensa em sonhar com chapéus-de-chuva a voar e
poças de água a cada passo?
A
discussão parecia não ter fim mas o ano bissexto, mais maduro, chamou à razão
os seus filhos querendo ouvir o que cada um tinha para dizer. Assim, o verão, suado,
mostrou o seu lado brilhante e o conforto das suas noites de ventos mornos e
pares de namorados à beira-mar, olhando a lua. Assim se sonha no verão.
O
outono lembrou a beleza das folhas caídas, pintando as terras, as estradas,
afagando as bases das árvores, aquecendo-as em camas coloridas, verde limão e
laranja tijolo, chamando ao recolhimento e ao sonho de uma natureza que
humildemente se despoja, sabendo que desse despojamento nascerá a vida,
renovada. Assim se sonha no outono.
Já o
inverno olha-se e recorda que consigo, à noite, as lareiras ardem em alentos
que confortam. As bebidas quentes e as comidas fortes juntam as famílias, que
se resguardam. Consigo, belos são os campos repletos de neve e os farrapos
caindo das árvores. Tudo se cobre, sob um manto branco de candura, e nas
montanhas os homens brincam como meninos. Assim se sonha no inverno.
Fez-se
silêncio. Afinal o sonho não era apanágio da primavera. Há sempre razões para
sonhar, se desperto se está.
Bissextos
e os filhos resolveram então tomar uma atitude. Era preciso colocar o sonho no
lugar que lhe pertencia, o de não ter um lugar em particular. Chamaram todas as
forças da natureza. Falaram com o deus sol e a deusa lua e todos os deuses e
deusas do firmamento. Pediram-lhes que se unissem para juntos mostrarem aos
humanos que a primavera da vida não tinha época, que a vida era indivisível,
inseparável da morte, que todas as estações da vida são parte dela e que o
homem sonha porque é homem.
Todos
os deuses se uniram. Dali até à primavera, a natureza, nas suas mais variadas formas,
enviou mensagens subtis a todos os homens e mulheres que davam como perdida a
primavera da vida.
Nesse
ano bissexto, foram muitos os que realizaram sonhos esquecidos e a primavera sorriu
em pleno inverno.
2014.01.20
Aldora
Amaral
4 comentários:
Dórita.
As letras vão de vento em popa.Achei o texto bastante simpático e em suas entrelinhas cada vez mais tem a marca Aldora Amaral.
O encontro do bissexto (e é importante dizer no hemisfério norte), o inverno chega primeiro já no nosso hemisfério tropical chega em terceiro lugar.
Muito bem humorada o conjunto de sua obra.
Viva a língua de Camões.
beijo grande,
Que bonito Aldora. Gostei muito. Adoro estas personificações. Muito doce! :) Beijinhos!
Aldora, Em ver o título do teu conto, “Primavera”, pensei de imediato no facto que já existem milhares de poemas, narrativos e composições musicais sobre esse tópico. Tais como obras de Salomão, Shakespeare e Vivaldi. Houvesse espaço para mais um? Então, foi com alguma apreensão que comecei a lê-lo.
Mas logo descobri que tinhas escrito uma fábula encantadora, num estilo que me lembrou um pouco das “Histórias Assim”, de Kipling, mas para adultos. Muito bem!
Aldora, Em ver o título do teu conto, “Primavera”, pensei de imediato no facto que já existem milhares de poemas, narrativos e composições musicais sobre esse tópico. Tais como obras de Salomão, Shakespeare e Vivaldi. Houvesse espaço para mais um? Então, foi com alguma apreensão que comecei a lê-lo.
Mas logo descobri que tinhas escrito uma fábula encantadora, num estilo que me lembrou um pouco das “Histórias Assim”, de Kipling, mas para adultos. Muito bem!
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