A mente que vivia à deriva
Era a uma vez uma mente que vivia à deriva, como um barco que não tem ninguém que o conduza. Está no mar mas anda ao sabor das ondas, vai para onde a maré o leva. Sem rumo, torna-se muito frágil. É muito fácil partir-se, se uma onda mais violenta o assalta. Se a maré a leva em direcção às rochas, não consegue evitá-las, nelas embate, parte-se e afunda-se. Sem alguém que o ajude a navegar, torna-se um pequeno brinquedo que,
arrastado pelas ondas, se perde, e não sabe como voltar ao cais.
Esta mente vivia num corpo que
também não tinha descanso. Havia em particular uma perna que parecia um pequeno
arbusto ao vento: ora abanava da esquerda para a direita, ora se apoiava nos
dedos do pé levantando e baixando o calcanhar num movimento, por vezes tão rápido,
que provocava o balanço de mesas, cadeiras ou bancos, onde o corpo tocava.
Cansada, esgotada, essa mente
resolveu parar. Mas, quando o tentou, verificou não saber como isso se fazia.
Um belo dia de inverno, a mente
meteu o corpo ao caminho e foi dar um passeio à beira-mar. Sentou-se nas
rochas, olhando o mar. O dia estava cinzento mas ameno. As ondas revoltas, deixavam
no ar uma névoa repleta de gotículas de água que faziam com que tudo à volta
estivesse rodeado de um nevoeiro mágico. Aquele mar, feito de espuma branca, era
maravilhoso. Os sons vindos do movimento enrolado das ondas ecoavam na mente, não
lhe deixando lugar para mais nada. O corpo estava calmo, a mente estava calma,
o mundo de repente parou: tudo era mar, tudo era paz.
Subitamente a mente retornou ao
movimento, surpreendida e assustada pelo não
movimento. Que era aquilo?!!! Será que era verdade? Será que tinha mesmo
parado? Que paz era aquela que desconhecia?
Decidida a perceber o que tinha
acontecido volta-se de novo para a contemplação do mar. Atenta, resolve
processar tudo o que acontece, analisando, questionando, relatando o mais
fielmente possível a experiência de olhar o mar. Nada! Minutos passados, não
tinha conseguido mais que uma espécie de relatório mental daquele mar que,
indiferente a mentes e corpos, se fazia ser. O corpo agitou-se. Que diabo, onde
tinha ido parar a paz que há momentos conhecera?! Calma, disse para consigo, se
conseguiste uma vez há sempre oportunidade de o repetires…
Convicta daquela possibilidade, olhou
de novo o mar que lhe devolveu a imagem envolvente e grandiosa, espaçosa e
acolhedora, reveladora de uma sensação de pequenez e insignificância gratificantes,
e de uma força que a contagiava. A última coisa de que se lembra, antes da
imensa paz revisitada, é de uma sensação mental e física de total entrega. O
mar, as ondas e os seus movimentos, o céu, o corpo e a mente, tudo, e todos, se
entrelaçam numa pura claridade sem começo nem fim, sem passado ou futuro, sem
ser isto ou aquilo. Uma paz em total liberdade feita de uma profunda e imensa
alegria, é. Nada há a pensar, explicar ou compreender. Tudo se encaixa, tudo
está bem. É a totalidade, a sensibilidade, o amor transbordante, imenso como o
mar.
E a mente soube que parar não é deixar
de ver, ouvir, percepcionar. Parar é estar presente, é estar onde se está, é
embarcar no momento presente e vivê-lo na sua plenitude: vendo-o, ouvindo-o,
sentindo-o, recebendo-o, sem filtros que o deturpem, sem medos que o afastem, sem
preconceitos que o pseudo-alterem..
A mente finalmente compreende que
parar é viver em paz, que viver é movimento e que paz é saber parar em
movimento. O corpo obedece, tal como o barco que finalmente se vê resgatado
pelo marinheiro, da sua deriva.
Costa da Caparica, 2009