domingo, 28 de setembro de 2014





Humanização da Palavra



Humanidade!
Fonte de vida cruel, negra, fútil, (des)humana...
Grita! Faz ouvir a tua voz: a do amor,
aquela que esqueceste
na luta pela sobrevivência da alma.
Primeira linguagem, primeiro pilar,
suporte de todos os capazes de amar.
Grita baixinho, aos ouvidos surdos
aos corações sofridos, fechados,
empedernidos, apavorados,
sussurra-lhes o silêncio do bem-querer,
para além das palavras.
Humaniza-os com o teu sorriso.
Retira-lhe os ódios, as invejas, as distâncias
Tudo o que os separa, isola, endoidece,
e suavemente, muito suavemente,
para que não se assustem com tão grande milagre,
(semente da santidade),
deixa no seu rasto, decora o seu caminho
com os aromas da alegria,
com a bondade do verdadeiro amor,
com a humildade do verdadeiro perdão,
com a equanimidade da verdadeira empatia.
E, com a coragem do verdadeiro guerreiro,
dá tudo o que tens, porque não te pertence,
a quem tudo necessita, porque se vê pobre.
Na palavra ou ausência dela sê quem és,
Humano!
Para além disso habita o profano
Tu, és sagrado.



2014.09.24

quarta-feira, 13 de agosto de 2014





Indicador


Vem, diz-me quem sou.
Atira-me todas as pedras,
aquelas, que dizes, feitas de amor,
aquelas que arrancas da calçada, descalça,
para te proteger,
de ti.

Vem, aponta-me o dedo,
esse, que teima em não se virar, para ti.
Para quê? Nada tem a apontar, de ti.

Não, não és perfeito, afirmas,
chavões da vida em que te enrolas,
te cobres, te tornas no “único”.

Vem, fala de mim, longe de mim
Não digas nada, de mim, a mim.
Sei. Não me queres magoar!
Gostas de mim e nisto calas
a coragem, ou falta dela.

Dizes de mim, sim!
Sabes de mim, sim!
Sabes quem sou, sim!
Falas de mim, sim!
Longe de mim, sim!
Nunca p’ra mim, sim!

Vem.
Tu, aquele que sabe de si,
tu, aquele sem dedos apontados,
e dos defeitos  que em si conhece,
difíceis de colocar em palavras…

Tu, Ego do mundo (des) humano,
habitante pleno de um caos profano,
vem, mostra-te,
despe-te, se és capaz!

TU

Não, não venhas.
Bastas-te aqui, em mim.



 2014.08.13
Rosa Bordeaux




segunda-feira, 5 de maio de 2014



Sonhos de prata e ouro





Salpico de prata e ouro o nosso amor

Para o tornar humano.
A prata dá-lhe a beleza da simplicidade
e o valor da moderação.
O ouro, a exaltação das coisas raras,
a grandeza do exuberante
e a riqueza da irradiação plena
de mil sois celestes.


Pinto de prata e ouro os meus sonhos,
os nossos sonhos,
como o poeta embala a poesia
como o pintor acaricia a tela vazia,
em tons de amor e dor


E, um dia, quando este amor,
(sonhado e vivido) 
morrer, porque partimos (eu e tu)
na preciosidade 
do incontornável sonho cumprido,
possa, 
na memória dos que connosco privaram,
brilhar ainda 
em ouro e prata
o sonho deste amor,pintado e sonhado 
na tela da vida.

2014.04.30

quarta-feira, 12 de março de 2014

O Mundo da Lua


Levantou-se cedo naquele dia. Pela ampla janela do quarto entrou a aurora, sorridente, anunciando a vinda do rei Sol. Como era bela a natureza! Tal entusiasmo levou-o a sair para o pequeno terraço que circundava a casa, decisão premiada com a visão da fugidia e bela Lua, brilhante e calma, ainda presente, talvez na expectativa de se cruzar com o tão amado astro, luminoso e intenso. O céu estava limpo, sem nuvens, aquelas que por não lhe pertencerem, podiam ser ausentes. Tomou o café ali mesmo, saboreando-lhe o aroma e toda a harmonia envolvente. Há cafés e cafés!
Tudo o que tem um início, tem um fim. Assim, como por magia, uma espécie de movimento do maior para o menor, trá-lo a outra faceta do tempo presente. É hora! Hora de recolher. Espanta-se com tal expressão. Por que razão se sentia a recolher? Aquela manhã estava estranha, muito estranha…
O automóvel espera-o à porta de casa, como um fiel servidor, discreto e dispendioso. Com a ignição vem a primeira novidade do dia: alguém matou alguém. O coração queixa-se, discreto, como um fiel, e para sempre, servidor. A hora marca o que tem de ser feito, é preciso continuar. O rádio anuncia, uma após outra, notícias de medos, roturas, embustes e trânsitos infernais, como é normal. Tudo decorre como o esperado, excepto a visão duma janela, que ficou para trás mas ali continua, teimosa, mostrando o sentido inverso. Ali, é preciso continuar, como é normal.
Olha pelo vidro do carro e lá está a Lua, ainda, provocadora. Olha-a, fixa-a. Em contornos esbatidos parece querer fundir-se com o céu. De repente uma qualquer sintonia estabelece-se. É no centro do peito que a sente. Vê-se a estender a mão à Lua, que se faz tão perto. Como será olhar a terra lá de cima? Sim, já viu fotografias da NASA, com excelente resolução mas nunca como agora viu a terra.
É lá de cima que olha a sua casa no universo, um pequeno ponto, azul, brilhante. Sente-se pequeno demais face a tanta beleza e serenidade. O corpo está mais leve, como se a fronteira que sempre acreditou existir entre corpo e o exterior se quebrasse e uma outra noção de liberdade, de interligação com tudo, se estabelecesse. Cores e formas mostram-se como são e tudo parece estar no lugar certo, tudo faz sentido.
Apetece-lhe abraçar a terra, acolhe-la no seu regaço e protege-la. No mesmo instante sente que o faz, que pode, e quer, acolher nos braços aquela mãe, agora num horizonte feito de não distância. O tamanho de que é feito transforma-se. É, sem tamanho.
Com a Terra em si uma dimensão desconhecida descobre-se. Reconhece um estado de não separação: Ele, a Terra, o Espaço, a Lua, o Universo, não são mais “Ele, a Terra, o Espaço, a Lua, o Universo”. É na não nomeação que reconhece o fluxo de harmonia sem tempo nem espaço, sem isto ou aquilo, seu eu e outro. A luz veste tudo o que inter-é.
De repente a Terra mostra-se de novo. Tinha voltado à separação. Ainda assim o abraço mantinha-se. A protecção que lhe dedicava era ainda insuficiente. Aconchegou-a mais e mais, a si, como que a revisitar o estado de não separação sabido. Olhou bem para aquele planeta tão frágil. Olhou-o nos olhos. O coração queixou-se, quando uma lágrima rolou por uma encosta. Atrás dela muitas outras lhe seguiram os passos. A Terra chorava.
O coração queixa-se. Ali, no mundo da Lua, volta-se também para ele. Sente-lhe o batimento alterado. Não é só a Terra que chora. Aquele órgão vital, sensível, associa-se ao que de repente os seus olhos podem observar. A Terra chora seus filhos perdidos, as entranhas rasgadas, estripadas, os céus poluídos.
Ali, de mão dada com a Lua, pode ver todo o sofrimento de um planeta que luta por sobreviver.
Vê homens de coração de oiro, empedernido por ele, crianças famintas de alimentos vários, guerras cujas armas matam esperanças. Vê um corre-corre, desenfreado e a inanição sem volta. Vê montanhas e florestas estropiadas, mares e rios cobertos de sangue, gentes fugindo com nada nas mãos e terror no coração. Vê belas obras espelhadas elevando ao céu as altas finanças, pastas de couro tingidas de morte, mentiras, traições, egoísmo extremo. Vê a Terra jurada de uma finitude precoce. Vê a separação fatal entre os reinos dos homens dos animais e dos vegetais. Corre-se para ter mais, muito e rapidamente. Morre-se por não se chegar a nada.
Subitamente, sente-se abraçado pelo Lua. Um raio de sol atinge a Terra alumiando-a. O coração alegra-se e uma vontade de fazer diferente invade-o.
O som de uma buzina e a voz alterada da mulher chamam-lhe atenção. Tinha deixado cair o vermelho sem se mover. Sorriu. O sol brilhava, o dia estava lindo. Finalmente arrancou. A mulher, a seu lado sentada, comenta perplexa que estava a tomar o caminho errado. Era já tarde e tinham que abrir a empresa. Olhou-a sorrindo dizendo-lhe que naquele dia não, não abriria a empresa. Apetecia-lhe parar, ir até ao mar. Olhar a natureza, contempla-la.
Almoçaram os dois à beira-mar. A companheira de vida quer saber o que se passa com ele, naquele dia, pois “parecia não estar cá”. Por onde andava?!
Sorriu-lhe e respondeu “ no mundo da lua!”.
Aldora Amaral

2013.11.30

domingo, 16 de fevereiro de 2014





É preciso cuidar do amor


É preciso cuidar do amor
Com muita perícia,
e alguma malícia.
Tratá-lo com pinças,
com luvas, caricias
e muita emoção.
Enxugar uma lágrima
em véu de cambraia,
rasgar um sorriso,
no sorriso amado.
Mimar o bastante
o amigo, amante,
em abraços doces
beijos escaldantes
noites mal dormidas
manhãs aquecidas
em corpos suados.
Do amor fazer
rios de prazer
sóis anunciados.
E quando a penumbra
ensombra o amor
descobrindo a dor
no par desarmado,
flores e doçura
abraços, ternura
adubam a terra
onde o amor espera
por ser relembrado.
No jogo do amor, a vida
se faz colorida.
Cumpre-se o desejo
de feliz se ser.
Na alegria, ou na dor,
é preciso cuidar do amor.

2014.02.12


Celebração

A cada ano que passa celebra-se o amor
Aquele amor que todos procuram
E raramente encontram.
O amor que dá, porque amar é isso
Que se sustenta a si próprio,
Que chora as lágrimas amadas,
Que ri os risos rasgados,
Ou os envergonhados.
Que está presente
No corpo e na mente.
Que sabe calar, se tal ajudar
Na hora de amar.
Um amor assim, não vira ruim.
Um amor assim, jamais se transforma
Sempre a si retorna para se alargar,
Desenha o amar em rostos plurais,
Transcende a casinha, o lar, a madrinha
O pai ou a mãe.
Amando o que vem, dá-se sem desdém
Sem medos, suspeitas, tramas, expectativas.
É amor sem dono, sem rei, nem patrono
Salpica sorrisos, Ilumina faces
Escreve Liberdade nos livros em branco
Neles registando tudo o que é amar.
Um amor assim explode no peito
Encarna o desejo de nada querer
Vive sem julgar e sem separar.
Este Amor, Maior,
Em todos reconhece
A ambição de feliz ser,
E a inquietação de não saber,
Como fazer
Para o cumprir.

2014.02.12






Identidades


Quem sou, quem não sou, nem eu sei!
Se o soubesse não era eu.
E é por não o ser, por o não saber
Que posso, tudo e nada ser.
Posso ser viva, morrendo.
Posso gritar de alegria, menina.
Posso aconchegar-te no colo
Limpar as tuas lágrimas
Guardar os teus segredos, amiga.
Posso sorrir ao espelho, vaidosa.
Andar ondulante, feminina e segura,
Tropeçar e cair na amargura
Rasgar corações em prantos
Entregar-me inteira, moçoila trigueira
Em abraços luxuriantes de amantes.
Ser filha, irmã e mãe e tudo fazer bem.
Posso ser a ovelha negra da família
Escrava do trabalho, vedeta, executiva, rainha.
Posso ser tudo isso e muito mais
Na identidade dos que buscam nada ser
De um ter hoje e amanhã não ter,
Nessa liberdade de vazio que em mim confio
Sei que nas muitas que sou
Está a identidade do efémero
Roupagem de tudo o que existe
No exultar da alegria e no se quedar triste.
Em mim, em ti, em nós
Acompanhados ou sós
Brindemos àquilo que é.
Na beleza nascida da certeza
De que mais nada sou
Do que aquela que rompeu a vida
Em pedaços de si
E amando, os espalhou.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

        



Até ser Primavera

Na primavera da vida todos os sonhos são possíveis. O ano, este bissexto, detestava particularmente esta apreciação. Por que carga de água (esta mais frequente no inverno e no verão dependendo da geografia do lugar), teria a primavera direitos que às outras estações eram negados? No mais fundo de si próprio, o ano bissexto, sentia-se como aquela mãe para quem, preferir um filho a outro era incompreensível. Cada um era o que era, dava e tomava de si diferentes emoções e sensações, mas a todos queria com a mesma intensidade. E sonhos, sonham-se em todas as estações ou melhor, sonhar é brincar com a vida que é um assunto muito sério.


Assim, o ano bissexto decidiu convocar todas as estações para refletirem sobre o problema e juntos encontrarem forma de mostrarem aos humanos que as estações do ano não são responsáveis pelos seus sonhos ou ausência deles.
Nesse dia a confusão instalou-se. O inverno foi o primeiro a chegar, era a sua estação. O dia acordou gelado. Todos se cobriam de agasalhos, mas de repente foi preciso tirar os gorros e as luvas pois o sol despontou suave e luminoso. Sempre pontual, a primavera que chegava sob o olhar incrédulo, dos que passavam por parques e jardins da cidade, perante o desabrochar das flores ou o seu crescimento a um ritmo nunca visto. A natureza parecia estar louca.
Ainda mal se tinham recomposto daquela súbita manifestação primaveril, em pleno inverno, já o verão se mostrava no seu esplendor decidido a chegar a horas à reunião. Flores murcharam de sede e as esplanadas encheram-se de gente e de roupagens despidas, ali mesmo, e penduradas em cadeiras. Até as praias viram as suas areias repletas de banhistas, desprevenidos, deixando as botas à beira mar e mergulhando os pés no oceano.
Os jornais não falavam de outra coisa. O dia caminhava pelas estações do ano deixando perplexos os homens e as mulheres, as crianças, os animais e os vegetais. A vida confundia-se ao ritmo da chegada das estações à reunião urgente.
Ao longe o outono anuncia-se e as folhas caem. Ventos fustigam a cidade e os habitantes recolhem as roupas, já temerosos do que o dia ainda lhes poderia reservar. Alguns diziam que um tempo assim não era bom sinal, outros lembravam que o tempo apenas manifestava o desprezo que a humanidade mostrava ter pelo planeta. Ninguém se entendia.
Finalmente as quatro estações estavam reunidas na casa do inverno que espalhou por todo o lado alguns flocos de neve como que agradecendo a presença de todos, na tradição de bem receber. Na rua tudo voltou ao normal. As gentes finalmente sentiam-se protegidas pela normalidade. Afinal estávamos em janeiro.
O bissexto abriu a sessão, feliz por ver os filhos reunidos. Primavera alega nunca ter influenciado os humanos na atribuição, a si, do sonhar da vida mas não se admirava de tal pois as suas manhãs, luminosas e calmas, e a harmonia das suas temperaturas chamavam à melancolia e ao sonho. Afinal ela anunciava o fogo do verão. O fogo é tumultuoso, chama à preguiça, pelo muito que desgasta. O outono talvez seja demasiado cinzento, para os sonhos desejados e o inverno, esse nem se fala, quem é que pensa em sonhar com chapéus-de-chuva a voar e poças de água a cada passo?
A discussão parecia não ter fim mas o ano bissexto, mais maduro, chamou à razão os seus filhos querendo ouvir o que cada um tinha para dizer. Assim, o verão, suado, mostrou o seu lado brilhante e o conforto das suas noites de ventos mornos e pares de namorados à beira-mar, olhando a lua. Assim se sonha no verão.
O outono lembrou a beleza das folhas caídas, pintando as terras, as estradas, afagando as bases das árvores, aquecendo-as em camas coloridas, verde limão e laranja tijolo, chamando ao recolhimento e ao sonho de uma natureza que humildemente se despoja, sabendo que desse despojamento nascerá a vida, renovada. Assim se sonha no outono.
Já o inverno olha-se e recorda que consigo, à noite, as lareiras ardem em alentos que confortam. As bebidas quentes e as comidas fortes juntam as famílias, que se resguardam. Consigo, belos são os campos repletos de neve e os farrapos caindo das árvores. Tudo se cobre, sob um manto branco de candura,  e nas montanhas os homens brincam como meninos. Assim se sonha no inverno.
Fez-se silêncio. Afinal o sonho não era apanágio da primavera. Há sempre razões para sonhar, se desperto se está. 
Bissextos e os filhos resolveram então tomar uma atitude. Era preciso colocar o sonho no lugar que lhe pertencia, o de não ter um lugar em particular. Chamaram todas as forças da natureza. Falaram com o deus sol e a deusa lua e todos os deuses e deusas do firmamento. Pediram-lhes que se unissem para juntos mostrarem aos humanos que a primavera da vida não tinha época, que a vida era indivisível, inseparável da morte, que todas as estações da vida são parte dela e que o homem sonha porque é homem.
Todos os deuses se uniram. Dali até à primavera, a natureza, nas suas mais variadas formas, enviou mensagens subtis a todos os homens e mulheres que davam como perdida a primavera da vida.
Nesse ano bissexto, foram muitos os que realizaram sonhos esquecidos e a primavera sorriu em pleno inverno.

2014.01.20
Aldora Amaral