O Mundo da Lua
Levantou-se cedo naquele dia. Pela
ampla janela do quarto entrou a aurora, sorridente, anunciando a vinda do rei Sol.
Como era bela a natureza! Tal entusiasmo levou-o a sair para o pequeno terraço
que circundava a casa, decisão premiada com a visão da fugidia e bela Lua,
brilhante e calma, ainda presente, talvez na expectativa de se cruzar com o tão
amado astro, luminoso e intenso. O céu estava limpo, sem nuvens, aquelas que
por não lhe pertencerem, podiam ser ausentes. Tomou o café ali mesmo,
saboreando-lhe o aroma e toda a harmonia envolvente. Há cafés e cafés!
Tudo o que tem um início, tem um
fim. Assim, como por magia, uma espécie de movimento do maior para o menor,
trá-lo a outra faceta do tempo presente. É hora! Hora de recolher. Espanta-se
com tal expressão. Por que razão se sentia a recolher? Aquela manhã estava
estranha, muito estranha…
O automóvel espera-o à porta de
casa, como um fiel servidor, discreto e dispendioso. Com a ignição vem a
primeira novidade do dia: alguém matou alguém. O coração queixa-se, discreto,
como um fiel, e para sempre, servidor. A hora marca o que tem de ser feito, é
preciso continuar. O rádio anuncia, uma após outra, notícias de medos, roturas,
embustes e trânsitos infernais, como é normal. Tudo decorre como o esperado, excepto a visão duma janela, que ficou para trás mas ali continua, teimosa,
mostrando o sentido inverso. Ali, é preciso continuar, como é normal.
Olha pelo vidro do carro e lá está a
Lua, ainda, provocadora. Olha-a, fixa-a. Em contornos esbatidos parece querer
fundir-se com o céu. De repente uma qualquer sintonia estabelece-se. É no
centro do peito que a sente. Vê-se a estender a mão à Lua, que se faz tão
perto. Como será olhar a terra lá de cima? Sim, já viu fotografias da NASA, com
excelente resolução mas nunca como agora viu a terra.
É lá de cima que olha a sua casa no
universo, um pequeno ponto, azul, brilhante. Sente-se pequeno demais face a
tanta beleza e serenidade. O corpo está mais leve, como se a fronteira que
sempre acreditou existir entre corpo e o exterior se quebrasse e uma outra
noção de liberdade, de interligação com tudo, se estabelecesse. Cores e formas
mostram-se como são e tudo parece estar no lugar certo, tudo faz sentido.
Apetece-lhe abraçar a terra,
acolhe-la no seu regaço e protege-la. No mesmo instante sente que o faz, que
pode, e quer, acolher nos braços aquela mãe, agora num horizonte feito de não
distância. O tamanho de que é feito transforma-se. É, sem tamanho.
Com a Terra em si uma dimensão
desconhecida descobre-se. Reconhece um estado de não separação: Ele, a Terra, o
Espaço, a Lua, o Universo, não são mais “Ele, a Terra, o Espaço, a Lua, o
Universo”. É na não nomeação que reconhece o fluxo de harmonia sem tempo nem
espaço, sem isto ou aquilo, seu eu e outro. A luz veste tudo o que inter-é.
De repente a Terra mostra-se de
novo. Tinha voltado à separação. Ainda assim o abraço mantinha-se. A protecção que lhe dedicava era ainda insuficiente. Aconchegou-a mais e mais, a si, como
que a revisitar o estado de não separação sabido. Olhou bem para aquele planeta
tão frágil. Olhou-o nos olhos. O coração queixou-se, quando uma lágrima rolou
por uma encosta. Atrás dela muitas outras lhe seguiram os passos. A Terra
chorava.
O coração queixa-se. Ali, no mundo
da Lua, volta-se também para ele. Sente-lhe o batimento alterado. Não é só a
Terra que chora. Aquele órgão vital, sensível, associa-se ao que de repente os
seus olhos podem observar. A Terra chora seus filhos perdidos, as entranhas
rasgadas, estripadas, os céus poluídos.
Ali, de mão dada com a Lua, pode ver
todo o sofrimento de um planeta que luta por sobreviver.
Vê homens de coração de oiro, empedernido
por ele, crianças famintas de alimentos vários, guerras cujas armas matam
esperanças. Vê um corre-corre, desenfreado e a inanição sem volta. Vê montanhas
e florestas estropiadas, mares e rios cobertos de sangue, gentes fugindo com
nada nas mãos e terror no coração. Vê belas obras espelhadas elevando ao céu as
altas finanças, pastas de couro tingidas de morte, mentiras, traições, egoísmo
extremo. Vê a Terra jurada de uma finitude precoce. Vê a separação fatal entre
os reinos dos homens dos animais e dos vegetais. Corre-se para ter mais, muito
e rapidamente. Morre-se por não se chegar a nada.
Subitamente, sente-se abraçado pelo
Lua. Um raio de sol atinge a Terra alumiando-a. O coração alegra-se e uma
vontade de fazer diferente invade-o.
O som de uma buzina e a voz alterada
da mulher chamam-lhe atenção. Tinha deixado cair o vermelho sem se mover.
Sorriu. O sol brilhava, o dia estava lindo. Finalmente arrancou. A mulher, a
seu lado sentada, comenta perplexa que estava a tomar o caminho errado. Era já
tarde e tinham que abrir a empresa. Olhou-a sorrindo dizendo-lhe que naquele
dia não, não abriria a empresa. Apetecia-lhe parar, ir até ao mar. Olhar a
natureza, contempla-la.
Almoçaram os dois à beira-mar. A
companheira de vida quer saber o que se passa com ele, naquele dia, pois “parecia
não estar cá”. Por onde andava?!
Sorriu-lhe e respondeu “ no mundo da
lua!”.
Aldora Amaral
2013.11.30
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