domingo, 8 de dezembro de 2013


Lançamento do livro "Lugares e Palavras de Natal", Alenquer, Museu João Mário





Hoje é Natal

Jesus desceu à Terra. Ninguém parecia dar por isso. Naquele 24 de dezembro, a azáfama reinava. A cidade desenhava contornos de formigueiro. Havia pressa, idas e vindas, toques, encontrões e pedidos de desculpa, embrulhos coloridos, luzes e decorações sofisticadas. A crise pairava sobre todas as cabeças, numas gerava fome, noutras, opulência.
O filho de Maria e José deambulava pela cidade, contemplando, perplexo aquela dimensão da existência, a humana. Para onde corriam? Porque não se olhavam?
De repente, um menino corre na sua direção ignorando os gritos da mãe para que não se afastasse. Reconhecera Jesus.
- Jesus, Jesus! Grita o rapaz.
Faz-se um silêncio que penetra todo o ambiente como se de um efeito ondulatório se tratasse. Algo se propaga perante o grito anunciador. Todos olham na direção sagrada.
- Jesus, continua o rapaz do alto da sua inocência, minha mãe diz que só nasces amanhã, como podes estar aqui hoje?
Jesus olha o rapazinho e sorri-lhe. Depois percorre com o olhar todos os que de si se acercam. Pega a mão do menino e inicia uma caminhada por entre os que, ainda espantados e incrédulos, ali se encontram. Pode ver rostos fartos, ricas roupagens, rostos famintos, rostos envelhecidos e sofridos, uns marcados pela dor da doença, outros pelo medo, pela solidão. Homens e mulheres tresmalhados, crianças velhas. Perante tudo isto, com uma voz suave mas determinada e um sorriso aberto e doce diz:
- Meus queridos amigos, irmãos, não existe tempo nem espaço no reino de Jesus e o reino de Jesus é o reino de todos vós, de cada um de vós. Hoje apresento-me aqui para vos mostrar isso mesmo. Nunca parto, nem regresso pois nunca me separei de vós, nem a vós me juntei. Todos os que a isto acederem, todos os que isto sabem, não se espantam com esta minha aparente visita antecipada. Aos outros digo que em mim confiem, que afastem os medos e as dúvidas. Abram o vosso coração e observem a vossa mente. Contemplem o que aí encontram, sem críticas, sem expectativas. Aceitem o que observam. Façam tudo isso, movidos pela vontade de entrar neste reino, a que chamam de Deus, e de percorrer o caminho da bondade, da honestidade, da solidariedade para com todos os seres, pois a todos eles pertence este reino. Considerem-nos, todos, sem exceção, como vossos filhos queridos. Observem os seus sofrimentos e as suas alegrias e façam vossos esses seus estados de espírito.
Jesus dirige-se, em seguida ao rosto marcado pela doença e diz-lhe:
- A doença a faz parte da vida. Pensa naqueles que sofrem mais do que tu, que têm doenças mais graves. Deseja que todos os que sofrem de doenças possam melhorar.
O enfermo assim fez e como por milagre o seu sofrimento por momentos desapareceu e então percebeu que pensar nos outros diminuía o seu sofrimento.
O mesmo se passou com aquela por quem a idade tinha passado demasiado depressa deixando marcas, às quais faltava beleza. Contemplando a tristeza que lhe vinha desse facto soube que a raiva que sentia no coração, cada vez que via uma jovem e bela rapariga, não se devia a essa rapariga, mas sim à não-aceitação da vida. Aos poucos foi amenizando a tristeza profunda que lhe habitava o coração e em breve até alguma graça brotava de cada ruga que descobria.
Também aquela mãe que chorava a partida do filho querido, ouvindo Jesus e observando essa dor pode mergulhar, finalmente, na fé que sempre sentiu ter.
Jesus fala-lhe:
 - Lembra-te que tudo o que tem um início tem um fim. Assim a vida também termina dando lugar a outra existência no reino de Deus.
Embora com saudade a mulher despediu-se de seu menino do coração, confortada por o Saber a caminho de um lugar mais perto de Jesus. Assim e pela primeira vez soube o que era ter fé, sem medos, sem dúvidas, a fé no reino de Deus.
E Jesus continuou:
- Quando verdadeiramente penetrarem neste reino, o de Deus, tudo vos fará sentido. Mesmo o que hoje vos parece injusto, inexplicável, será claro como os belos raios de sol. No reino de Deus existe amor, compaixão, alegria, solidariedade e verdade. Tudo isto habita também o coração de todos vós pois nada existe fora deste reino. No dia em que percebeis isto sereis livres e felizes.
Jesus faz uma pausa. Havia lagrimas de comoção, de emoção, em muitos rostos. O sorriso de Jesus torna-se ainda mais doce. Todos se sentem tocados.
E Jesus prossegue:
- Recordem-se de não existo fora de vós mas, como o esqueçais, ou não o reconheceis, finjo regressar todos os anos, a 25 de Dezembro, uma data inventada por vós. Enquanto assim permanecerdes, para vós renascerei, como renasço sempre que abris o coração para ver Jesus, para sentir Jesus. É Natal, é tempo de todos o fazerem. Experimentem, abram o coração, abram a mente e deixem o Natal florir em todos vós. Deitem fora todos os medos, as invejas, as desconfianças, as raivas, as vinganças e deixem o amor que existe no vosso coração, que sou eu, Jesus, manifestar-se. Sejam amor. O Natal vive em todos vós, sois vós que o expulsais a cada acto, pensamento ou palavra fora do reino de Deus.
Após estas palavras, Jesus olhou o rapazinho que continuava agarrado à sua mão, sorriu-lhe, pegou-lhe ao colo e aconchegou-o junto ao peito, segredando-lhe: Tu também és Jesus, o filho de Deus.
No instante seguinte, tudo voltava ao normal. Era como se nada se tivesse passado. A rua movimentada pareceria voltar ao frenesim que anteriormente conhecera.
José, assim se chamava o menino, jamais esqueceu aquele abraço e as palavras sussurradas ao ouvido. Diz-se até, que naquele Natal, todos os que tinham visto Jesus, haviam de o viver como nunca o haviam feito. Uma força, desconhecida, vinda do fundo de si teria inundado os seus corações e mentes. Essa força levara-os a gestos mais solidários, nesses e noutros natais mas também no tempo entre eles.
José não sabe por que razão Maria, sua velha companheira de vida nunca acreditou muito nesta história. Ainda jovens, ria-se quando José a invocava como se de uma traquinice se tratasse. Agora, no final da existência terrena, mais perto dos céus, dizia-lhe amiúde que tal repetição se devia ao passar do tempo. José não se importava. Maria era uma boa mulher que sempre tinha tido o natal no coração. Via Jesus sem o saber.
No mundo das recordações, José vivia ainda o aconchego do colo sagrado e isso bastava-lhe. Amanhã, quando Deus o chamasse para junto de si, estava certo O reconheceria pois também ele era Jesus, o filho de Deus.

Hoje é Natal e o 25 de dezembro ainda vem longe.

Aldora Amaral
2013.10.07






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