O Silêncio dos Corações
Naquele tempo um bater suave
e profundo expressava a paz sentida. Não, não vivia num qualquer céu, repleto
de harpas e vestes suaves cobrindo corpos ondulados e belos, de longos cabelos
loiros. Não, naquele tempo os corações falavam e os espaços tinham faces
conhecidas. O tempo era um aliado e companheiro. Os ritmos, outros.
Lembra-se das longas
conversas entre batimentos tão próximos. Falava-se de amor, da amizade, de
alegria mas também das tristezas, dos sofrimentos que cada um sentia ou sabia
habitar um outro. Sim, porque naquele tempo de proximidade, qualquer arritmia,
qualquer movimento era por todos sentido, tal era a empatia existente entre
esses órgãos fundamentais da vida física, símbolos poéticos de existências solteiras do que quer que seja ou mergulhadas em laivos de lucidez mais ou
menos constantes.
À medida que os ritmos
cardíacos se afastavam cresciam as distâncias entre corações. Com o tempo,
essas distâncias foram reforçadas por couraças cada vez mais sofisticadas. A
respiração viu-se obrigada a reforçar a intensidade das trocas que constituem a
sua natureza. O cansaço instalou-se.
Com a distância veio também
a solidão. Corações couraçados ocuparam o lugar dos outros: os desprevenidos,
os guerreiros de Shambala cujo
coração sangra de sensibilidade, os corações escancarados, aqueles que detêm a
paz, a liberdade, a alegria pura.
De couraça em couraça, vão
esquecendo quem são e as interligações que estabelecem. Vivem no silêncio das
mortes lentas, anunciadas. Falam línguas de fogo, com que queimam as
esperanças. Decidem sobre as vidas dos outros esquecendo de que matéria são
feitos. Tornam-se duros. Pulsam para si próprios. Vivem sob a capa opaca,
pesada, do medo. Adoecem precocemente, param subitamente.
Como em todos os tempos, há
os que resistem, numa teimosa mas firme certeza de que foram feitos para o
amor, para batimentos conjuntos. Recordam algures o tempo dos encontros entre
corações e sabem que esse tempo existe, ainda, perdido no universo. Procuram
outros e reconhecem-nos, se param para os escutar. Esses encontros, pródigos em
linguagens ricas e verdadeiras, tendem a mostrar a beleza de tudo o que existe.
O tempo, esse aliado e companheiro de corações que o entendem, que o aceitam,
que lhe dão a mão e com ele bailam a dança da vida, está bem presente e
mostra-lhes a disponibilidade dos grandes espaços. No encontro, entre corações a
alegria descobre-se, o amor despe-se de todas as escravidões. Soltam-se amarras
e a viagem rumo ao amor em liberdade tem início, sem nunca ter tido fim.
É no silêncio dos corações
que a morte habita, negra, hirta, gelada.
Hoje, neste tempo de mortes
lentas e anunciadas vou aquecer o meu coração, pintá-lo de branco e atirá-lo ao
alto, como um balão colorido que desperta a alegria nas crianças e o desejo,
esquecido, reprimido, de brincar, que nem os corações couraçados alguma vez
perderam. O tempo, esse aliado, chega então de mansinho e avaria os relógios. O
homem ri, rebola-se na relva junto do menino que persegue o cão. A lua aparece
no horizonte, empurrando o sol para o outro lado do planeta.
O mundo cala-se. Faz-se
silêncio. Dos corações renasce a luz das vozes inaudíveis.
2013.11.14
4 comentários:
Lindo Aldora!!! Continua assim. Beijão :-)
Há 3 semanas eu vi um pequeno balão em forma de coração, reflectindo como um espelho, a flutuar sobre o meu quintal sem destino certo. Isto realmente ocorreu. Se pelo menos eu tivesse lido a tua história..!
Há 3 semanas eu vi um pequeno balão em forma de coração, reflectindo como um espelho, a flutuar sobre o meu quintal sem destino certo. Isto realmente ocorreu. Se pelo menos eu tivesse lido a tua história..!
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